A dobragem portuguesa de Soul- Uma História com Alma

Caminhando nos terrenos incertos do Instagram, deparei-me com uma publicação do Nuno Markl que me deixou a pensar. Aparentemente, no novo filme da Pixar, Soul (em Portugal, o filme ganhou o subtítulo de Uma Aventura com Alma), que estreou no passado dia 25 de dezembro, nenhuma das personagens é dobrada por um ator negro, contrariamente do que tem acontecido nos restantes países.



Jorge Morato, ator português que deu voz a algumas personagens famosas, como o Mestre Grou, da trilogia de filmes (e posteriores curta-metragens) Panda do Kung Fu, interpretou Joe Gardner, um professor de música que após ter a possibilidade de realizar o seu sonho, de tocar numa banda de jazz, sofreu um acidente, acabando por falecer, tendo, assim, a sua alma separada do seu corpo. Além Jorge Mourato, foram escolhidos atores como Pedro Pernas, Mónica Garcez ou José Nobre. Contudo, nenhum ator negro foi escolhido para atuar no filme. A princípio, esta situação pode aparentar não representar um problema muito grave. No entanto, a decisão da Disney em Portugal torna-se muito mais grave quando analisado o contexto por detrás da produção do filme.



Joe Gardner é o primeiro protagonista negro num filme da Pixar, estúdio de animação americano pertencente à Walt Disney Corporation. Além disso, Soul- Uma Aventura com Alma é um filme que vem eternizar a cultura da música jazz, um estilo de música que advém do passado da história afroamericana, representando um importante passo na representatividade negra no cinema. Sendo este um filme com um certo foco no público infantil, é necessário que estes temas sejam representados da melhor forma. E quando o quesito é animação, a dobragem é fundamental. 



E foi isso mesmo que aconteceu nos Estados Unidos, país de origem e palco da história do filme. O ator Jamie Foxx, conhecido pelos seus papéis em filmes como Django Unchained, de Quentin Tarantino, vestiu a pele de Gardner, dando voz aos pensamentos e falas da personagem em países de língua inglesa. Diversos países acompanharam esta tendência, incorporando atores negros no elenco da dobragem do filme, como foi o caso da França e da Espanha, em que o protagonista ganhou a voz de atores negros. No entanto, não foi isto que aconteceu em Portugal. Jorge Mourato foi escolhido para interpretar o músico.



Esta escolha gerou imensa polémica e revolta, especialmente em membros da comunidade luso-africana. Uma destas vozes foi Dino D´Santiago, que mostra a sua frustração ao afirmar que:” Portugal violou por completo o principio que deu vida a este que para NÓS seria mais do que um filme de animação”. Afirmou ainda que não existe qualquer tipo de representatividade da cultura afro-portuguesa num elenco que conta com mais de 20 personagens. Outra das vozes que expressou o seu descontentamento foi a de Marco Mendonça, que, num post no Facebook afirmou que:” É certamente uma vitória termos acesso a um filme da Pixar protagonizado por personagens e vozes negras, mas porque não esforçarmo-nos para prolongar essa vitória? Porque não considerarmos artistas de pele negra para dar voz a personagens negras? A representatividade deve ser uma das principais ferramentas contra o racismo, mas o primeiro passo está em querer combatê-lo”. 



A questão que se coloca aqui não é a de que todas as personagens devem ser interpretadas por atores que partilhem do mesmo tom de pele. Aliás, a personagem Kratos da série de jogos God of War é, literalmente, apelidada de “Ghost of Sparta” (em português, “fantasma de Esparta”), graças ao seu tom de pele clara e, ao longo de 16 anos, foi interpretada por dois atores negros: Chirstopher Judge e Terrence “TC” Carson.  O cerne deste problema está no contexto em que se insere. Como já foi descrito anteriormente, Soul é um importante passo na representatividade da comunidade negra no grande ecrã (ou no pequeno ecrã, graças à pandemia da Covid-19). O problema é que não há representatividade na dobragem portuguesa naquele que é um dos filmes mais importantes na educação das novas gerações sobre a comunidade negra. Ainda mais num país que dispõe de uma gama de talentosos atores negros, perfeitamente capazes e confortáveis em interpretar o papel de uma personagem tão inspiradora para tanta gente. Mamadou Ba, ativista e dirigente da associação SOS Racismo, comparou esta situação da escolha do elenco português ao conceito da Black Face- quando, nos Estados Unidos, atores brancos interpretavam personagens negras ridicularizando-as, numa altura em que os afro-americanos nem sequer podiam entrar em teatros.



Inicialmente, o ator Jorge Mourato, aquando da escolha para o papel, admitiu que não era racista por ter aceitado trabalhar no filme. Mais tarde, em conversa com Rui Unas no programa “Na Casa do Unas”, transmitido no dia 29 de dezembro de 2020, retificou as suas afirmações, dizendo que errou na abordagem à situação e que se pudesse não aceitar o papel, não o faria. O ator chegou a afirmar que é um “racista em desconstrução”.



Voltamos assim à publicação de Nuno Markl. No seu texto, o animador da Rádio Comercial afirmou que:” Sempre que acontece uma coisa destas, prossegue-se o escavar do fosso que afasta esses atores das oportunidades que merecem. Quando se fala de racismo sistémico, fala-se de percalços destes: não terá havido más intenções, mas o simbolismo de Soul, apesar de contar uma história universal sobre emoções que atravessam pessoas de todas as cores e culturas, é particularmente especial e devia ser celebrado cá como aconteceu nas versões dobradas de Soul noutros países".  Muita gente devia prestar atenção a estas palavras. Mesmo que não tenham havido más intenções, a equipa de dobragem não cometeu um erro muito grave, pois não?



Cometeu. No ano de estreia deste filme, muitos foram os marcos da luta contra esta doença social que é o racismo. Vítimas deste tipo de abusos, como foi o caso de George Floyd, tornaram-se ícones nesta luta que já dura há muito mais de meio milénio. Portanto, qualquer movimento que se mostre conta o racismo é, a meu ver, muito positivo e importante. Por isso é que devemos apoiar a representatividade negra do cinema. Soul é um destes filmes, mas não em português…



 



Luís Coelho| a68266



 



Fontes:



https://www.noticiasaominuto.com/fama/1655797/nuno-markl-comenta-polemica-com-jorge-mourato



https://www.nit.pt/cultura/cinema/versao-portuguesa-de-soul-gera-polemica-por-quase-nao-incluir-atores-negros



 


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publicado por - fcar - às 02:34 | comentar | favorito