Nasci com direito a viver, que já considero um privilégio ao qual muitos não têm acesso e não temos escolha, nasci com o direito a viver não porque mereci mais que outros mas porque o meu país o conquistou, “Não existe triunfo sem perda. Não há vitória sem sofrimento. Não há liberdade sem sacrifício.” (em O Senhor dos Aneis – O retorno do Rei) a minha cultura alcançou a possibilidade de não existirem crianças soldado, de existir cuidado suficiente com as mulheres para evitar um absurdo valor de mortalidade infantial e desde que nasci que sou benificiado pela minha cultura, que trabalhou por um estado de direitos e liberdades que se abre ao que todos dizem e não se fecha, que aceita mormente a opinião de todos e de cada um, “Sem a cultura, e a liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade, por mais perfeita que seja, não passa de uma selva. É por isso que toda a criação autêntica é um dom para o futuro” (Albert Camus). Nasci com direito a pensar porque a minha família, maioritariamente angolana, foi aceite e integrada em Portugal, numa cultura que aceita a diferença e não repudia o que vem de fora, não renega quem pensa fora da caixa e assim também eu me habituei a ser, valorizar a minha opinião e saber que tem valor, aceitando a dos outros.
Aprendi durante toda a minha vida que deveria ser atencioso para com os idosos e bem educado, mas manter um certo grau de proximidade e confiança ao tratar os parentes próximos pela segunda pessoa contrariamente ao que acontece na cultura brasileira, por exemplo, onde tratam qualquer individuo mais velho por “você” ou “senhor/a”, fui ensinado a fazer a minha higiene regularmente e cuidar-me mas não a um nível como o da cultura Turca em que lavam os pés entre seis e dez vezes por dia como ato de respeito aos locais que frequentam e ao solo que pisam. Durante toda a minha infância as educadoras que tive me tentaram transmitir que devíamos aceitar a diferença ignorando-a, ou seja, aceitar que existem pessoas diferentes de nós e com culturas diferentes mas ignorar as barreiras que possam resultar desse facto. Na minha sala coexistiam ucranianos e angolanos que não estavam habituados a conviver nos nossos moldes e com as nossas brincadeiras quando chegaram mas rapidamente se aperceberam que nós queriamos brincar com eles, queriamos aprender as brincadeiras deles e ensinar-lhes as nossas. Descobri como se aceita a diferença porque na minha cultura se priveligia a educação, onde vivo priveligiam o bom ensinar das crianças, dos jovens, “O que se faz agora com as crianças é o que elas farão depois com a sociedade.” (Karl Mannheim), “Eduquem as crianças, para que não seja necessário punir os adultos.” (Pitágoras), “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo.” (Paulo Freire) são frases que caracterizam o que a educação é na minha cultura, é uma forma de ensinar as crianças a serem adultos, de mostrar a forma de interagir com o mundo e de facto, em Portugal, aprendemos muito e tiramos muito daquilo que os nossos professores/educadores são e nos transmitem. Enquanto noutros países do mundo funciona de forma diferente, tentam formar-se excelentes profissionais e chega a ser uma “vergonha” para toda a família se um filho reprovar um ano letivo, como no Japão, por exemplo.
Ao longo da minha vida, decorrente de interações com outros indivíduos (sejam amigos, familiares, colegas, professores) habituei-me a retirar certas atitudes dos mesmos e usá-las como se fossem minhas, por exemplo e principalmente ao nível da linguagem como algumas expressões características dessas pessoas que eu adotei como minhas também, ou formas de pensar que eu entendi e percebi que eram a forma como no fundo eu penso. Considero que a aprendizagem por modelação teve um papel fulcral na minha forma de agir em sociedade uma vez que através da minha interação com outras pessoas aprendi, gradualmente, novas cortesias a adotar nas minhas relações em sociedade e a minha postura alterou-se. Sinto que a minha quietude em público é uma postura adquirida através da figura do meu pai, bastante quieto e calmo; a minha ironia e sátira calculo que tenham sido assimiladas por interação com o meu primo/tio (que são ambos muito parecidos uma vez que o segundo acaba por ser um “exemplo” para o primeiro) que são pessoas que convivem muito comigo e aprendi bastante com elas.
Focando na minha família posso dizer que já sou uma vitíma do processo de Mundialização, sou um cruzamento de culturas Africanas (Angola maioritariamente mas também Marrocos) com a cultura Portuguesa, e é evidente no meu dia-a-dia essas cicatrizes, marcadamente ao nível da dieta onde se encontram hábitos claramente Africanos: Calulu, Pirão, Moqueca, Moamba ou o Cuzcuz Marroquino.
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